ENTREVISTAS – PROFISSIONAIS DA ARTE

ENTREVISTAS – PROFISSIONAIS DA ARTE

Seguimos com nossas entrevistas junto com as profissionais da arte com uma conversa conduzida por Julia Baker com a produtora cultural Stella Paiva. A entrevistada nos conta um pouco do seu percurso na área, mostrando como a produção atua em conjunto com artistas, curadores, montadores, museólogos, comunicação, enfim, é uma profissão que precisa estar sempre atenta e ajudar a negociar desejos e vontades. Produzir não se traduz em, apenas, executar e sim em pensar, negociar, compartilhar, colaborar e mais uma infinidade de ações que a função clama.

NAPUPILA – Produção cultural é uma profissão relativamente nova – no sentido da existência de graduação e cursos de especialização assim como regulamentações sobre a área. Pode nos contar como você se tornou produtora.

STELLA PAIVA – Conclui minha graduação em Comunicação Social na PUC Minas no ano 2000. Durante o curso, ainda na universidade, fiz estágios em algumas agências de publicidade em Belo Horizonte. Nesse período tive contato com produções de campanhas publicitárias, acompanhando a realização de fotos e filmes. Era uma área que me atraía muito, mas em Belo Horizonte não existia nenhum curso superior de cinema, muito menos de produção cultural.

Em 2001, uma amiga que trabalhava como assistente de direção me indicou para um estágio de produção em um longa metragem. Foi o primeiro que participei. Lembro-me do último dia de filmagem em locação externa – era numa lagoa onde foi encenada uma procissão, o filme era de época. Quando o sol se pôs e pegamos a van de volta pra casa, estava tão impressionada com a força das cenas gravadas que, apesar do cansaço, passei o caminho pensando que tinha encontrado o trabalho que gostaria de fazer para o resto da minha vida

A partir desta experiência, comecei a trabalhar no meio audiovisual. Foram 11 anos como autônoma e, durante esse tempo, acabei me especializando em produção de objetos de cena e produção de arte, funções que fazem parte do departamento de artes de um filme.

Durante os anos que trabalhei no departamento de artes passei por experiências muito ricas que só foram possíveis por causa do cinema: muitas viagens, contato com grandes equipes com múltiplas funções, contato com grandes diretores dentre outras oportunidades únicas.

Morando em São Paulo também tive a oportunidade de trabalhar na produção de peças de teatro e exposições.

NP – Você tem passagens pelo área do audiovisual e das artes visuais. Quais são os pontos que você destaca como similares em termos de produção nessas duas áreas.

S.P. – Fazer produção é viabilizar ideias, é propiciar as condições necessárias para a realização de projetos.

Existem produtores que somente executam projetos e aqueles que são proponentes de projetos. Tudo depende do tipo e tamanho do projeto. Claro que, dependendo do tamanho, as funções são divididas entre uma equipe de produção.

Posso citar algumas funções básicas de um produtor. Independente da área, são funções que estão diretamente ligadas ao planejamento, como a organização e execução das atividades de acordo com um cronograma e orçamento existentes. O grande segredo é fazer isso sem prejudicar o conteúdo dos projetos.

A principal diferença entre produção de artes visuais e de cinema é que nas exposições lidamos diretamente com a materialidade das obras de arte, e é essa especificidade que faz toda diferença na execução do trabalho.

O produto final é uma exposição de arte que ficará aberta ao público e, portanto, exige cuidados especiais relacionados à conservação e segurança das obras dispostas no espaço expositivo. Existem muitos artistas que atuam entre as artes visuais e o cinema e que utilizam recursos audiovisuais em suas criações.

Mas, voltando ao fazer produção, no cinema, além da diferença do produto final, o filme, existe uma grande diferença na estrutura e tamanho da equipe, os atores, o orçamento… É uma produção muito mais cara, se comparada à das exposições.

Quando me mudei para o Rio de Janeiro, o meu objetivo era apenas trocar de cidade, não de área. Em São Paulo o mercado para o profissional freelancer oferece muito mais oportunidades do que no Rio, onde tive a chance de entrar para uma instituição cultural. Confesso que tive um pouco de medo de não me acostumar com a rotina, porque no cinema tinha uma vida imprevisível, com viagens e horários fora do padrão. Mas tive sorte de vir trabalhar num museu com o perfil do Museu de Arte do Rio (MAR).

O que faz a diferença é a instituição produzir a sua própria programação, porque esse fator influencia diretamente no envolvimento das áreas que encaram uma programação intensa, produzindo muitas exposições. Cada exposição é um novo projeto e isso faz com que o trabalho seja muito motivador.

 NP – Você atua muito com a produção de exposições – acredito que já tenham realizado mais de 50 montagens. Pode compartilhar um pouco como é o processo. E, por serem em espaços institucionalizados, quais são as principais vantagens e desvantagens de ocorrem dentro desse modelo.

S.P. – No museu o trabalho é desenvolvido a partir de uma programação anual e, portanto, a participação das equipes acontece desde o início. Além das exposições, são realizadas diversas atividades e eventos que dialogam entre si. Tudo começa com muita pesquisa e com muitas parcerias que são peças fundamentais para uma boa programação.

A partir da concepção curatorial, as áreas envolvidas são responsáveis pela definição e aprovação de um orçamento para cada exposição prevista no plano anual.

A pesquisa é a etapa essencial para o início dos processos de pré produção. Geralmente, o trabalho de pesquisa de uma exposição continua ao longo da produção. A área curatorial é responsável pela definição das obras, etapa que deve ser compartilhada com as demais equipes, para que o trabalho de produção se inicie.

A partir daí, a produção inicia a fase de solicitação de empréstimos e contratação de serviços. A montagem das obras é a parte final , quando as obras da exposição já estão definidas e os empréstimos aceitos. Chega então  a hora de “subir” as obras.

Durante meus oito anos no MAR, tive a oportunidade de trabalhar em muitas exposições, o que não aconteceria com a mesma intensidade se eu estivesse fora da instituição.

Uma das vantagens das instituições culturais é a existência das equipes internas, o que proporciona uma continuidade do trabalho. Entretanto muitas instituições não possuem equipes suficientes para a produção dos seus conteúdos, e muitas vezes é necessário a contratação de equipe externa. Cada instituição cultural tem o seu perfil, sua missão, seus valores, sua especificidade e tenta se adequar dentro de sua realidade.

Desde o início, o MAR foi pensado para ter sua própria programação, suas exposições, seus eventos, para isso o museu tem uma equipe de curadoria, educaçõ, produção e comunicação dedicadas a programação, além de toda a estrutura administrativa. Com certeza essa é uma das principais vantagens de um espaço institucionalizado como o MAR : a estrutura disponível, o espaço e as ferramentas.

A maior contradição e também o maior desafio para a curadoria e produção nesses espaços estão na dificuldade de lidar com as exigências burocráticas em contraste com o mundo da arte.

Um instituição pública precisa seguir regras e processos assim como prestar contas para muitos órgãos públicos. Portanto , há uma exigência e um controle sobre os processos que precisam existir. Por conta disso, surgem desafios para a instituição, já que as produções artísticas são únicas, não existe um padrão, não existem 3 orçamentos de uma produção de obra.

NP – Como você vê o reconhecimento do profissional de produção no campo das artes. Pergunto não só em relação ao olhar do público, mas na relação com os demais profissionais com os quais você atua.

S.P. – A profissão do produtor de artes visuais surgiu da necessidade de se ter um profissional que cuidasse da parte mais operacional para deixar os curadores e artistas mais livres para os processos criativos. A figura do produtor vem também dos marchand e galeristas que eram os principais incentivadores e produtores de exposições de arte no Brasil até os anos 80.

Com as leis de incentivo,  a importância da função do produtor foi impulsionada, pois o produtor era também o proponente de projetos e captador de recursos para a realização das produções. Hoje em dia temos alguns cursos superiores de produção cultural, o que também ajudou muito na valorização do profissional.

Sinto que no meio artístico, as pessoas ligadas diretamente ao fazer da exposição, reconhecem sim a importância do produtor, não só como um executor, mas como figura essencial para a viabilização do projeto. O produtor de artes visuais também tem importante papel na divulgação das artes. Parece existir uma hierarquia entre funções técnicas e operacionas em relação às funções intelectuais. Não que seja proposital, mas parece existir uma relação desigual de importância, que tem sido social, política e historicamente constituída há muito tempo.
Penso, contudo, que estas dinâmicas têm se alterado nos últimos tempos, pelo menos na minha percepção e nas relações de trabalho que venho cultivando. Nos últimos anos, tive o prazer de trabalhar com curadores que valorizam o trabalho da equipe como um todo, que respeitam as responsabilidades de cada profissional.

É tempo de rever as formas de trabalho, muitas exposições pretendem uma aproximação maior do público, a democratização dos conteúdos. Essas mudanças precisam acontecer para além das programações, da forma de criar, é preciso mudar também internamente às instituições, perceber a importância de cada um na realização de um projeto. Essa percepção modifica as relações e modifica todo o ambiente de trabalho.

NP – Você ocupa, atualmente, um cargo alto em uma instituição cultural, é coordenadora de produção. Sofreu alguma dificuldade por ser mulher? Acha que existem limitações impostas pelo gênero na sua área e, principalmente, quando o gênero femino está em posições de chefia?

S.P. – Sim, claro. Como toda mulher nesse mundo machista que vivemos, infelizmente já nascemos sujeitas a passar por situações de desrespeito e assédio.

Uma vez perdi uma promoção de trabalho para um homem por acharem que ele seria mais “adequado” para lidar com o chefe, não pela competência, mas apenas pelo fato dele ser homem.

Mas existe um tipo de abuso que não é muito falado que é o abuso de poder. No meio artístico se vivencia esse tipo de abuso com frequência.

No cinema, o assédio sexual vem junto com o abuso de poder, principalmente para quem está começando e é jovem. É impressionante a cara de pau dos homens. Não sei se nesses 8 anos que estive fora desse cenário as coisas melhoraram, inclusive, atualmente, está acontecendo uma campanha contra o assédio nos sets de filmagem. Infelizmente é uma realidade.

A maioria das produtoras de artes visuais que conheço e que já trabalhei são mulheres e muito respeitadas no meio, principalmente pela seriedade do trabalho, que é lidar com empréstimos de obras e com colecionadores de arte. Mas muitos curadores, principalmente os da velha guarda, insistem em humilhar ou não levar em consideração os outros profissionais envolvidos em uma montagem.

NP – Pode nos contar de alguma experiência marcante para você na produção de exposições.

S.P. – Gosto muito de pensar no diálogo da produção artística contemporânea com o momento que estamos vivendo e como isso modifica a produção das obras e possibilita o surgimento de um montante de artistas fabulosos e potentes.

Tive muitas experiências marcantes. Dja Guata Porã foi uma das exposições que mais me influenciou na forma como enxergar a arte no mundo agora. Porque com ela foi possível trazer a produção artística de artistas indígenas contemporâneos para dentro de uma instituição. Foi um desafio a produção dessa mostra, a contratação de artistas que muitas vezes não tinham documentos ou conta bancária, mas valeu muito a pena. No dia da inauguração o espaço expositivo estava cheio de artistas indígenas, que vieram ver as suas obras expostas em um museu.

 Posso contar mais um caso que exemplifica muito bem quando um artista reconhece o seu valor, a sua força e a utiliza. Uma artista teve uma atitude muito bacana em uma exposição que eu estava trabalhando. Por uma definição curatorial, foram retirados os créditos com os nomes da equipe da parede, ficando somente o da curadoria e o da artista. A artista não aceitou essa imposição e ameaçou a direção cultural do espaço dizendo que retiraria a exposição caso os créditos não voltassem para a parede. Claro que ela conseguiu e na hora os créditos foram recolocados. Lembrei desse caso porque demonstra a disputa de poder que existe nas instituições culturais.

Stella Paiva – Coordenadora de produção do MAR, onde já produziu mais de 50
exposições desde a sua inauguração, entre elas: O Rio do Samba, Casa Carioca, Arte
Democracia Utopia, Dja Guata Porã, além de eventos que fazem parte da programação
do museu. Produtora há 19 anos. Durante esse período trabalhou também com cinema e teatro.





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