ENTREVISTAS – PROFISSIONAIS DA ARTE

ENTREVISTAS – PROFISSIONAIS DA ARTE

Passamos nossa vida educando e sendo educados, em uma eterna troca de cadeiras entre esses papéis afinal, o estudante tem tanto a oferecer quanto o professor, o tutor. Educação invade espaços, não é apenas na sala de aula, com um quadro branco ou, atualmente, na frente do computador, que ela se dá. Os espaços educacionais são múltiplos e, em instituições culturais e museais, a educação aparece para questionar, criar fissuras e possibilitar diálogos e reflexões a respeito das artes.

A educação e a arte caminham ou, deveriam, caminhar juntas. O papel do educador em um museu, apesar de não ser valorizado por certas instâncias é essencial para a instituição. Em um espaço de cubo branco, que poderia se entregar a monotonia de corpos passantes, o educador está lá para questionar o trajeto, fazer o espectador desafiar o que lhe é dado. Com muita felicidade trazemos a entrevista da educadora Bruna Camargos para a seção de profissionais da arte. Bruna atua em educação pensando a no espaço social e artístico. Sua entrevista, cedida gentilmente a Julia Baker, faz uma importante crítica ao valor que as instituições concedem aos profissionais da educação. São micro políticas cotidianas que não valorizam a importância desses indivíduos nos quadros das instituições. Exemplos no período pandêmico não faltaram desde uma maior precarização do trabalho até demissões em massa dos corpos educativos. Bruna nos mostra como as relações são prévias ao momento atual e a diferença que profissionais dedicados à área fazem no campo das artes.

NAPUPILA – Conte um pouco sobre sua formação e como você se envolveu no campo de educação em arte.

BRUNA CAMARGOS – Foram as práticas comunitárias e as pedagogias populares que me fizeram adentrar no campo da educação museal, essas experiências marcam meu interesse de pesquisa e ação. 

Sou de uma zona periférica do subúrbio carioca, cria da favela de Parada de Lucas, estudante da rede pública de ensino. Nessa época, nas décadas de 1990 e 2000, podemos dizer que os movimentos sociais foram os grandes responsáveis pela formação de um repertório crítico e artístico nas periferias. Existia e ainda existe um campo muito desigual no acesso aos equipamentos culturais e no ensino das artes. 

Neste universo das organizações sociais, trabalhei por 6 anos na ONG AfroReggae, coordenando projetos na interlocução entre arte, cultura, educação e mobilidade social. Em 2006, iniciei a graduação em História, na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, momento em que o sistema de cotas estava dando seus primeiros passos na democratização do acesso e nas profundas transformações no ensino superior do país. Atuar diretamente no campo da educação era um desejo e um horizonte de formação. Antes de começar a trabalhar em museus, fiz uma pós-graduação em Relações Internacionais, como aluna bolsista no Ibmec

Na minha trajetória o diálogo entre arte, educação e história começa a se materializar na pesquisa de mestrado em História Social da Cultura na PUC-Rio. Foi nesse momento, também, em 2015, que comecei a trabalhar como educadora de projetos na Escola do Olhar no Museu de Arte do Rio (MAR). Acredito que a minha seleção para ocupar a vaga, para além da formação, estava intrinsecamente ligada às experiências comunitárias. Na época, orientado pelo desejo de construir uma polícia de ação com os moradores da região portuária, o Museu tinha como proposta a formulação de uma agenda com o território que passava pela mediação cultural, tendo no Programa Vizinhos do MAR, um dos eixos estruturantes de conformação do programa de educação da Escola do Olhar. 

A experiência no MAR foi fundamental para a minha formação como educadora. Os debates, conexões e os repertórios mobilizados com a equipe e o ambiente de criação na Escola do Olhar são vivências que me acompanham e reverberam no meu pensamento sobre o campo. Não posso deixar de citar a importância que Janaina Melo e Gleyce Kelly Heitor tiveram nessa formação e na abertura da educação museal como campo profissional na minha trajetória. Desde então, venho me dedicando à prática educativa em instituições e projetos culturais. Entre outras atuações, estive como coordenadora pedagógica na Universidade das Quebradas e como Coordenadora de educação no Instituto Inhotim (2019-2020), sempre interessada no diálogo entre movimentos sociais e mediação cultural, na interface entre educação, museu, cidade e território.

De fato, como público tardio de museus, passei a questionar a função dos museus “ditos tradicionais”, a lógica classista do ensino da arte e as narrativas historicamente institucionalizadas. Acredito que a arte e o incentivo à imaginação, com todos os seus caminhos de errância, de dúvida, são direito fundamentais. Esta relação com sensível amplia os mundos, a consciência, é capaz de nos levar a processos profundos de cura. Tais pensamentos são o diálogo que me interessa estabelecer com a educação em arte, caminhos que são contraponto a manutenção do poder e do status quo, que colocam em evidência, também, todo o processo de exclusão e precarização das vidas que existem nos museus e no sistema de artes.

NP – Você acha problemática a forma como a área de educação é tratada em instituições? Como você enxerga a relação entre curadoria-artistas-educadores nos espaços de museus e instituições culturais?

B.C. – Acho super problemática. As instituições, em sua grande maioria, repetem a lógica de desvalorização da educação que vemos em muitos lugares. Se por um lado a educação está no centro discursivo dos projetos de museus e instituições culturais, na prática devemos nos perguntar como isso acontece. Qual o comprometimento dessas instituições na valorização da educação? Esse comprometimento precisa perpassar a dinâmica do trabalho, as condições materiais e discursivas. Poderíamos falar a partir de muitos lugares, mas vou chamar a atenção para um fato importante dentro da lógica capitalista que vivemos: como é a folha de pagamento da equipe de educação nessas instituições? Qual o regime de contrato desses educadores? Quanto recebem pelo trabalho oferecido? Este pagamento está em consonância com as exigências do cargo? 

Falar da relação entre curadoria-artistas-educadores é abordar muitas nuances. Fazendo uma generalização da questão, digo que muitas vezes o estabelecimento dessa relação depende de quem está ocupando essas posições, outras vezes, depende de como a instituição enxerga essas posições. Temos experiências de envolvimentos e diálogos profundos em projetos expositivos dessas três entidades nomeadas aqui. Exposições em que educadores são chamados para dialogar com artistas e curadores desde o princípio dos projetos, levando em consideração os lugares de fala, repertórios e experiências. Existem muitos artistas e curadores interessados no diálogo com a educação. Além de uma posição híbrida entre esses campos: curadores-educadores, educadores-curadores, curadores-artistas, artistas-curadores, educadores-artistas, artistas-educadores. 

Por outro lado, sabe-se de casos em que a curadoria, toma a educação como um repositório e repetição, que basta o compartilhamento dos textos de parede e de pesquisas curatoriais para que o trabalho da educação seja realizado, realmente existem curadores que acham um estorvo ou não veem necessidade em trocar com a educação, entendendo este como um trabalho menor. O mesmo ocorre na relação de alguns artistas com os educadores, cuja intenção é informar como estes devem operar ou fazer a leitura de seus trabalho com o público. 

NP – É interessante notar que existe uma grande presença feminina na área de educação nos museus e espaços culturais. Você acha que já existe igualdade de gênero nesta área? Acha que ainda existem limitações criadas para as mulheres nessa área da cultura?

B.C. – A grande presença feminina na área de educação dos museus e espaços culturais guarda profundas relações com a história/conquistas das mulheres no mercado de trabalho e, também, com as desigualdades e subjulgos de gênero e raça. Numa sociedade de extremo controle das corpas e corpos, erguida numa lógica patriarcal, o trabalho no magistério era tido como uma profissão “aceitável” para mulheres, daí uma presença substancial de mulheres na educação. Ainda nessa superfície, podemos nos perguntar se a desvalorização da educação no país se instaura, entre outras, nessa chave de leitura.  Eu acredito que esta é uma possibilidade.

Não se trata da desigualdade salarial no exercício da profissão entre mulheres e homens, mas na compreensão do campo sobre a ótica de gênero, uma leitura social da educação como um campo menos valorizado por estar historicamente ligado à presença feminina. Num aprofundamento e complexidade no debate é preciso racializar a questão, uma vez que, assim como nas nossas estruturas, temos uma racialização que nos foi imposta na composição de mundos da branquitude.

Por exemplo, podemos pensar que para muitas mulheres, e me refiro a mulheres negras, não existia o debate do que eram as profissões “aceitáveis” e sim uma exploração destes corpos, incluindo o trabalho. A leitura do livro Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, de bell hooks, colabora bastante nessa discussão.

Então, se olharmos para o campo da educação hoje em espaços culturais e em museus, o que temos são as limitações enquanto agenda e ausência/presença de certas corpas e corpos nas instituições. Acredito que o debate contemporâneo passa por este lugar, precisamos prestar atenção a comunicação, as significações e elaboração de pensamentos que surgem a partir da agenda e ocupação de lugares pelas corpas e corpos negros e LGBTQIA+ nessas instituições.

Se o campo da educação em artes nos permite elaborar criticamente o passado, presente e partilharmos horizontes de futuros, temos que discutir a relação deste campo e das instituições com a garantia e a existência de cidadanias múltiplas.

NP – Mediador, educador, arte-educador; existem vários profissionais ligados a área de educação nas artes mas, muitas vezes não entendemos as nuances e diferenças de atuação. Você poderia contar um pouco sobre como cada um desses profissionais atua e suas diferenças.

B.C. – Essas nuances são difíceis de compreender, muitas das vezes trata-se de um mesmo trabalho realizado por educadores que terão nomeações de cargos diferentes de acordo com o organograma das instituições e isso dificulta bastante o reconhecimento da profissão. Muitas das vezes essa diferenciação de nomenclatura dos cargos não se dá na diferenciação de atuação e sim no regimento de contratação. Por exemplo, estagiários são contratado como mediadores, enquanto CLTs são contratados como educadores ou arte-educadores. Nesse sentido, gostaria de chamar atenção para o grande número de contratações que se instauram nas instituições sobre o regime de prestadores de serviços, como os MEI, ou estagiários.

Este tipo de procedimento, cada vez mais comum e recorrente, é um enfraquecimento do campo e se torna ainda mais grave quando estamos falando de instituições cuja definição está alicerçada na sua função social e educativa. Não falo somente dos museus e instituições de arte, mas das variadas tipologias dessas instituições.

No campo da educação museal tivemos muitos avanços, principalmente se pensarmos a partir dos anos 1950 até aqui, é um campo de atuação que está em constante transformação, em diálogo direto com a sociedade. Mas, temos discussões de longa data que não foram superadas no exercício da profissão, o reconhecimento como categoria e sua regulamentação é um desses debates. Temos profissionais de diferentes campos do conhecimento atuando como educadores em museus e instituições de arte, e isso é um ganho para o diálogo transdisciplinar tão necessário para a relação com o campo artístico. Existem formações (que estão fora da categoria disciplinar do conhecimento) e habilidades específicas requeridas para a atuação com a educação museal. Nesse sentido, de um maneira simplista, diria que a mediação está para a educação museal como a didática está para os professores em sala de aula. Se na vivência cotidiana de museus e instituições culturais, a necessidade de formação constante desses educadores ainda é um lugar de disputa, temos alguns documentos que encaminham essas diretrizes, como o Plano Nacional de Educação Museal (PNEM) e o Plano Nacional Setorial de Museus (PNSM).

Por fim, retomo a necessidade de regulamentação e de um plano de carreira para a profissão, para que tenhamos condições e tempo comprometido no desenvolvimento de um pensamento sistêmico da prática educativa e suas inovações metodológicas.

NP – Quais são os principais desafios, para você, no campo de educação nas artes, pensando o momento atual e na reestruturação dos espaços culturais?

B.C. – Continuarmos existindo. Os desafios colocados não são de agora, mas adquirem uma maior dimensão neste momento de crise. Estamos lidando de maneira mais acelerada com os desafios que o século XXI nos impõe, como o usos das tecnologia e as novas formas de linguagem, leitura da realidade e de mundos. Nada disso é uma novidade no universo de discussões da educação museal, mas a intensidade das respostas e sua articulação sim.  Estamos reimaginando nossas atuações, a forma de relação e produção de sociedades. Acredito que isto vai ampliar não somente as expertises de atuação na educação museal, incorporando novos saberes e profissionais à área, mas, também, ampliar o debate de questões, que a educação museal vem tomando para si – tais como: diálogo, participação, inclusão, acessibilidade -,  para outros setores dos espaços culturais. Mas nada disso, está posto numa dinâmica apaziguada, estamos lidando com um modelo hegemônico capitalista que naturaliza a cultura como um produto, onde afetos e vidas se formulam em vendas, negócios e exclusões. 

Isso nos leva a outro desafio, o aspecto econômico, que está ligado a descontinuidade de projetos, enfatizando a vulnerabilidade de certos setores profissionais dentro dos espaços culturais. Assistimos uma série de demissões e suspensão de contratos de trabalho de educadores, receptivos, seguranças, profissionais ligados a limpeza desses espaços e etc, essa escolhas dizem muito à respeito dos desafios que temos pela frente, do que estamos falando e elaborando quando atuamos com educação, que tipo de práticas de educação em artes emergem desses espaços a partir dessas escolhas de futuro? 

O que nos leva de volta a discussão sobre a profissionalização do setor e do comprometimento que as instituições culturais têm com as vidas.  Qual o papel dessas instituições na reflexão, na produção do conhecimento, no estabelecimento de novas coletividades, na participação democrática, nas agendas de cuidado? Não se trata de retirar o importante papel de entretenimento que as instituições culturais tiveram e têm na manutenção da saúde mental, trata-se de questionar a centralidade desse papel na atuação que tivemos num primeiro momento de isolamento social devido a pandemia de Covid-19.  O que os museus e instituições culturais podem fazer na reimaginação do presente? O que e quais são os aprendizado do momento  que vivemos?

Bruna Camargos – Mestre em História Social da Cultura, educadora e pesquisadora. Suas vivências têm dialogado com movimentos sociais e mediação cultural, na interface entre arte, educação, museu, cidade e território.




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